sábado, 5 de novembro de 2016

XXXII Domingo do Tempo Comum - ano C - 6/11/2016

       1 – Os dias 1 e 2 de novembro, com a solenidade de Todos os Santos e a comemoração dos Fiéis Defuntos, e todo o mês vivido como o mês das almas, evoca a fé católica na ressurreição da carne (pessoa) e a comunhão dos santos. Todos nos encaminhamos para a morte. Todos nos encaminhamos para a vida eterna. A morte não tem a última palavra. A última palavra é da vida. É de Deus. É do Amor que nos faz transcender já na vida histórica, transcendendo-nos para a eternidade de Deus.
       A oração, os gestos de carinho e cuidado pelos mortos, o arranjo das campas e do cemitério, nestes dias, pelo menos, mostra a gratidão para com familiares, amigos e vizinhos, sublinha a saudade da sua partida, evoca a esperança de um encontro futuro na ressurreição. Eles morreram. Partiram antes de nós. Levaram um pouco de nós, deixaram um pouco deles. Confiamos em Deus e esperamos reencontrar-nos na eternidade. No decorrer da Última Ceia, Jesus diz aos Seus discípulos que vai partir para o Pai, vai preparar-lhes um lugar. A tristeza do momento presente, pela separação, dará lugar à alegria do (re)encontro na Casa do Pai.
       É mais fácil acreditar em Deus que na vida eterna. A sensibilidade popular, tanto as pessoas mais piedosas como as mais instruídas acreditam facilmente num Deus bom, generoso, benevolente, que protege e abençoa. Quando se fala na vida além da morte (biológica), na ressurreição ou na eternidade já colocam mais interrogações. Ninguém veio do outro lado dizer-nos como é, só sabemos até ao momento da morte! Cá se fazem, cá se pagam! O bem e o mal serão retribuíveis durante a existência terrena... mesmo que saibamos de tantas injustiças das quais os prejudicados nunca foram ressarcidos nem os fautores foram penalizados! O cemitério como última morada! Todos temos um destino comum: a terra…
       Augusto Cury, célebre psiquiatra brasileiro, ao investigar a inteligência humana, chega à conclusão que seria um absurdo que tudo acabasse com a morte física, seria em vão todo o esforço feito por melhorar a vida das pessoas, a sabedoria acumulada, as descobertas, a própria inteligência que exige e luta pela eternidade. Ateu, através das suas investigações, chega à conclusão que a identidade da pessoa há de sobreviver à morte biológica, garantindo que a identidade de cada um não se perde para sempre. Assim se torna crente. A fé em Deus é decorrente da exigência da identidade sobreviver ao tempo e à história.
       2 – Escutemos o Evangelho. Logo de entrada o evangelista fala nos saduceus que se aproximam de Jesus, dizendo que eles não acreditam na ressurreição. São religiosos, frequentam o Templo, vivem as exigências da Lei judaica, mas não acreditam que haja vida além da vida temporal.
       Provocam Jesus com uma questão, no mínimo, curiosa: «Moisés deixou-nos escrito: ‘Se morrer a alguém um irmão, que deixe mulher, mas sem filhos, esse homem deve casar com a viúva, para dar descendência a seu irmão’. Ora havia sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu sem filhos. O segundo e depois o terceiro desposaram a viúva; e o mesmo sucedeu aos sete, que morreram e não deixaram filhos. Por fim, morreu também a mulher. De qual destes será ela esposa na ressurreição, uma vez que os sete a tiveram por mulher?».
       Recorrendo aos ensinamentos de Moisés, que têm o peso e a sabedoria da Lei, os saduceus transportam para a eternidade as mesmas vivências e tradições. E no caso concreto até tem a sua lógica, pois também nós defendemos as repercussões da vida atual na eternidade, ainda que não desta forma tão material. Segundo a Lei, um casamento teria que dar fruto, pela parte masculina, assegurando a linhagem familiar. Se o homem morresse sem descendência, os irmãos assumiam o encargo de lhe dar descendência desposando a mulher (ou seja, a cunhada) até que gerasse um filho. Neste exemplo, todos os irmãos a desposaram, mas nenhum lhe deu descendência. Havendo continuidade material-histórica na eternidade, com quem ficava a mulher? Houve um tempo em que as pessoas julgavam que ressuscitavam como tinham morrido, por exemplo, sem um olho, ou com o rosto já encovado! Ou seja, a eternidade seria, destarte, a continuação natural do tempo e da história. Morre novo, ressuscita novo. Morre idoso, ressuscita idoso!
       A resposta de Jesus é clarificadora: «Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento. Mas aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos, nem se casam nem se dão em casamento. Na verdade, já não podem morrer, pois são como os Anjos, e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus. E que os mortos ressuscitam, até Moisés o deu a entender no episódio da sarça ardente, quando chama ao Senhor ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob’. Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos».
       A ressurreição dos mortos é agrafada à fé em Deus, pois para Ele todos estão vivos.
       3 – Jesus recorre ao Antigo Testamento para elucidar a fé em Deus e na ressurreição. Utiliza a mesma fonte dos seus interlocutores. A primeira leitura, por sua vez, traz-nos uma das passagens veterotestamentárias mais explícitas sobre a ressurreição.
       As invasões a que esteve sujeito o Reino de Israel, com a divisão, com a subjugação a povos estrangeiros, com o exílio de muitas famílias, levou à necessidade de preservar a fé, as tradições, os usos e costumes, para que não se perdesse o património cultural e religioso, a identidade do Povo de Deus. O segundo Livro de Macabeus terá sido escrito no Egipto, para os judeus aí residentes, retratando personagens heroicas, convidando à conversão e fidelidade à Aliança.
       O autor sagrado parte do pressuposto que o exílio é consequência natural e merecida dos pecados do povo, dos transvios à Lei de Moisés, das infidelidades à Aliança. Agora há que manter acesa a chama da fé, não perdendo de vista a herança recebida, até ao dia do regresso à terra prometida.
       Sete irmãos e a sua mãe são presos. O rei da Síria quer obrigá-los a trair a sua Lei, comendo carne de porco. A resposta dos irmãos, apoiados pela firmeza maternal, é clarividente: «Estamos prontos para morrer, antes que violar a lei de nossos pais». Com a morte de um, os seguintes poderiam vacilar, por medo, pela violência infligida. Mas também o segundo se mantém decidido: «Tu, malvado, pretendes arrancar-nos a vida presente, mas o Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis». A tortura continua e a resposta do terceiro irmão é igualmente clarificadora: «Do Céu recebi estes membros e é por causa das suas leis que os desprezo, pois do Céu espero recebê-los de novo».
       A coragem dos jovens e as suas palavras fazem admirar o próprio rei e quantos o acompanham. Segue o quarto irmão e o mesmo destemor: «Vale a pena morrermos às mãos dos homens, quando temos a esperança em Deus de que Ele nos ressuscitará; mas tu, ó rei, não ressuscitarás para a vida».
       Na continuação do texto, verifica-se que os sete se fortalecem mutuamente. E a Mãe, que chorava por dentro a morte dos filhos, exteriormente animava-os, pois entendia que era muito mais importante sobreviver para Deus.
       4 – A continuidade entre o tempo e a eternidade, entre a história e a vida gloriosa, propalada pelos saduceus, não é de todo descabida, ainda que não da forma material-biológica com que questionaram Jesus. Com efeito, a vida eterna inicia-se aqui e agora (hic et nunc) na situação concreta, real, histórica. A salvação é dom gratuito de Deus. Cabe-nos acolhê-la e transparecê-la. O tempo que nos é dado é de graça, mas graça que nos irmana, nos compromete e nos envolve na transformação do mundo. Ressuscitados, pela água e pelo Espírito no Batismo, há que viver como ressuscitados, apostados na cultura da vida, da fraternidade, da compaixão. Seria uma contradição "viver" como mortos, deixando correr, afastando-se das dificuldades, mantendo-se indiferente ao sofrimento dos outros.
       O Apóstolo Paulo, na segunda missiva à Igreja de Tessalónica, convoca à fé comprometida com a vida: "Jesus Cristo, nosso Senhor, e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu, pela sua graça, eterna consolação e feliz esperança, confortem os vossos corações e os tornem firmes em toda a espécie de boas obras e palavras".
       À saudação segue-se o pedido de oração: "orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague rapidamente e seja glorificada, como acontece no meio de vós. Orai também, para que sejamos livres dos homens perversos e maus, pois nem todos têm fé. Mas o Senhor é fiel: Ele vos dará firmeza e vos guardará do Maligno". E acrescenta a confiança que deposita nos membros na comunidade: "Quanto a vós, confiamos inteiramente no Senhor que cumpris e cumprireis o que vos mandamos. O Senhor dirija os vossos corações, para que amem a Deus e aguardem a Cristo com perseverança".

       5 – A oração conduz-nos à vontade de Deus. Colocamo-nos em atitude de escuta, para que Ele fale em nós. "Deus eterno e misericordioso, afastai de nós toda a adversidade, para que, sem obstáculos do corpo ou do espírito, possamos livremente cumprir a vossa vontade".
       Quem ora a Deus com sinceridade está a comprometer-se com a Sua vontade. É como pedirmos a opinião a alguém. Se somos sinceros, só perguntaremos para ultrapassar uma dúvida ou indecisão, e se levamos a sério a pergunta e a resposta, sujeitamo-nos a alterar a trajetória. A oração predispõe-nos, na escuta, à obediência.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): 2 Mac 7, 1-2. 9-14; Sal 16 (17); 2 Tes 2, 16 – 3, 5; Lc 20, 27-38.

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