sábado, 13 de fevereiro de 2016

Domingo I da Quaresma - ano C - 14 de fevereiro

       1 – A Quarta-feira de Cinzas dá início à Quaresma com o gesto significativo da imposição das cinzas sobre as nossas cabeças, recordando-nos algo de essencial para continuarmos a ser humanos: a nossa ligação aos outros e a Deus. A fragilidade não é um atributo de menoridade, mas a oportunidade de nos abrirmos aos outros e ao Transcendente. A cinza e a areia, a pequenez e o deserto. Tomar consciência dos nossos limites, dispondo-nos a acolher Deus para acolhermos os nossos semelhantes, especialmente os mais frágeis.
       Nesta semana acentuou-se a discussão à volta da eutanásia, ou melhor, da morte assistida. Depois da facilitação do aborto, sem qualquer controlo nem reflexão, é mais um passo em ordem à raça ariana defendida por Hitler e pelo nazismo: eliminação de todos os seres humanos diminuídos – os não-nascidos, idosos, pessoas portadoras de deficiência, doentes... e, depois, de todos os que nos incomodam, sejam judeus ou turcos ou os nossos vizinhos. Corre já a discussão defendendo o "aborto" dos nascituros. Um casal de cientistas veio defender que um bebé quando nasce é igual a um feto de 12 ou de 24 semanas, ainda não decide por si mesmo, logo não é portador de direitos, logo os pais podem decidir se vive ou se morre, independentemente dos motivos. Mais algum tempo e decidir-se-á sobre qualquer pessoa que não tenha pleno uso da razão!
       Salvaguarde-se o respeito e o acolhimento de todos os que viveram situações traumáticas e, que muitas vezes, não encontraram quem ajudasse positivamente. Por conseguinte, no Jubileu da Misericórdia o Papa Francisco concedeu a todos os sacerdotes a faculdade de absolver as pessoas envolvidas no aborto, para que todos beneficiem da Misericórdia de Deus.
       O gesto, muito expressivo, das cinzas, mas de toda a vivência quaresmal, aviva-nos a consciência sobre a nossa indigência e finitude. Somos vasos de barro nos quais Deus coloca a abundância do Seu amor e da Sua misericórdia. Cabe-nos cuidar uns dos outros, reconhecendo-nos promotores da vida e não causadores de morte, de abandono, de indiferença.
       2 – Jesus, guiado pelo Espírito Santo, vai para o deserto e leva-nos com Ele, para fazermos a experiência do despojamento, da humildade, capacitando-nos para as situações mais adversas.
       A opção de Jesus é inequívoca. Deixa-Se conduzir pelo Espírito, para que n'Ele sobrevenha a vontade do Pai, mesmo quando as tentações se querem sobrepor à Sua missão. Quarenta dias alimentando-Se de outro pão, de uma ligação mais forte que a fome ou que a morte.
       O deserto remete-nos para o essencial, pondo em evidência as nossas fraquezas, libertando-nos do que é acessório. Com o avançar dos dias começam as dúvidas e as incertezas, os suores frios e as alucinações! É possível perder-se não havendo ninguém por perto a quem recorrer. Quando estamos mais frágeis, tudo nos passa pela cabeça!
       Vem o Diabo com um caminho alternativo, caminho do poder e da força, caminho da facilidade e da indiferença, sem tocar o humano, o frágil, a indigência, caminho do milagre e do espetáculo impondo-nos a Sua divindade, caminho de egoísmo, utilizando o poder em benefício próprio, excluindo todo o trabalho e sacrifício, todo o esforço:
A) «Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão»; B) «Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos, porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser. Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu»; C) «Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo, porque está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, para que Te guardem’; e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra’».
       As respostas de Jesus são concludentes: 
A) «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem’»; B) «Está escrito: ‘Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto’»; C) «Está mandado: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
       Seguindo o Caminho de Jesus, decalcando a Sua postura e a Sua intimidade com o Pai, ser-nos-á possível vencer as tentações.
       3 – Tantas situações da vida em que gostaríamos de ter o poder de mudar as coisas, de vencer os adversários, de que nos caísse do céu uma vida facilitada sem procura nem esforço! Como gostaríamos de ter os outros aos nossos pés como se fôssemos as pessoas mais importantes do mundo. A vida de mão beijada! Sim, mas isso não seria a nossa vida! A vida é-nos dada por Deus, em abundância, mas para viver, para nos esforçarmos, para convivermos com as adversidades, mas dando luta, sem desistir.
       Deus é Pai de misericórdia e está connosco, nos nossos desertos, como esteve com Jesus naquele deserto. Mais à frente a tentação virá de enxurrada, no Horto das Oliveiras, um deserto (interior) mais intenso: Jesus queria que tudo passasse rapidamente e de forma indolor. Mas foi só um momento, a tentação. Não é o deserto que nos mata. O que nos mata é não termos Alguém a quem recorrer. O que nos mata é o sem-sentido da vida, o não ter nada por que morrer ou por que viver!
       A vida de Jesus será uma oferenda permanente. Oferecer-Se-á por nós, esgotando-Se. Não usará o poder em benefício próprio. Não Se salvará a Si mesmo. A tentação da cruz – salva-te a ti e a nós também – será superada pela entrega – Pai, perdoa-lhes. Fácil seria transformar as pedras em pão. Mas não seria humano. Humano é trabalhar com honestidade pelo pão de cada dia. Quando necessário Jesus há de transformar a água em vinho de qualidade que sacia a nossa sede e nos permite continuar a festa da vida; multiplicará os pães e converter-nos-á em pessoas solidárias, para que não falte o alimente a ninguém. "Tive fome e deste-me de comer". A fé traduz-se nas obras de misericórdia.
       Em muitas situações seria mais fácil ter poder e ter riqueza e mandar nos outros e ter muitas pessoas a servir-nos. O caminho de Jesus é o serviço, o centro são os pobres, a opção primeira é pelos últimos. O filho do Homem veio para servir e dar a vida por nós!
       D. António Couto, na mensagem para esta Quaresma, desafia-nos: "Façamos, amados irmãos e irmãs, do tempo da Quaresma um tempo de diferença, e não de indiferença. Dilatemos as cordas do nosso coração até às periferias do mundo, e que o nosso olhar seja de Misericórdia para os nossos irmãos de perto e de longe". O mundo não gira à nossa volta, mas dos irmãos mais pequeninos.

       4 – Nem só de pão vive o homem mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (Lc 4, 4; Mt 4, 4). Duas partes da mesma equação. Se nos centrarmos apenas no pão corremos o risco de nos esquecermos de tudo o que nos rodeia. Se nos fixarmos na Palavra de Deus, o "risco" do compromisso e da partilha solidária. A Palavra de Deus alimenta-nos e envia-nos aos outros, ao cuidado de todos, mas sobretudo dos mais pobres. O que fizeste ao mais pequeno dos meus irmãos a Mim o fizeste (Mt 25, 40).
       Deus ouve a voz dos oprimidos, do pobre, da viúva e do órfão. Vem em auxílio dos seus eleitos, vem socorrer e salvar o seu povo. "O Senhor Deus dos nossos pais ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava".
       Ontem como hoje, somos peregrinos, caminheiros. "Meu pai era um arameu errante". Desde Abraão que moramos como que em terra estrangeira, preparando-nos para a pátria definitiva, quando Deus enxugar todas as nossas lágrimas, quando todos formos irmãos em Cristo.
       Moisés prioriza os bens da terra. Serão oferenda para Deus que nos libertou. Se Ele nos libertou também há de prover à abundância do alimento. Partindo de Deus, chegaremos aos irmãos.
       Por sua vez, o apóstolo São Paulo veicula a precedência da fé e da Palavra de Deus, acessível a todos, acentuando a gratuidade da salvação: «A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração… Esta é a palavra da fé que nós pregamos. Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo... Não há diferença entre judeu e grego: todos têm o mesmo Senhor, rico para com todos os que O invocam».

       5 – Primeiro o Reino de Deus e o mais virá por acréscimo. Peçamos com fé ao Senhor, para que nos conceda "que, pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja dele um digno testemunho" (Coleta).
       Jesus confia no Pai, pelo que não precisa de O pôr à prova. Com efeito, Jesus é que é provado na Sua confiança. No meio do deserto Ele pode rezar connosco o Salmo: “Na palma das mãos te levarão, para que não tropeces em alguma pedra… Porque em Mim confiou, hei de salvá-lo, hei de atendê-lo, estarei com ele na tribulação, / hei de libertá-lo e dar-lhe glória”.
       Súplica e não usurpação. O Diabo quer obrigar Deus. O Salmo abandona-nos confiantes nas mãos de Deus que virá em nosso auxílio, gratuitamente, não porque sou eu, ou sou o melhor do mundo, mas porque sou Filho e porque Ele é Pai de misericórdia. Para todos.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Deut 26, 4-10; Sl 90 (91); Rom 10, 8-13; Lc 4, 1-13.

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