sexta-feira, 2 de outubro de 2015

XXVII Domingo do Tempo Comum - ano B - 4.outubro

        1 – Fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Deus é Pai e Filho e Espírito Santo. Santíssima Trindade. Comunidade de vida e de amor. Também nós somos família, fomos criados para vivermos como povo, como irmãos, solidariamente, ajudando-nos. Osso dos meus ossos, carne da minha carne. Somos uns em relação aos outros, ainda que se visualize de forma mais transparente na complementaridade do homem e da mulher, auxiliares um do outro. Extensível à humanidade inteira. Estamos enxertados uns nos outros, ainda que por vezes nos esqueçamos da nossa origem, da nossa identidade e do nosso ADN, cujas células se interligam muito além de toda a aparência e de todas as diferenças.
       Quando olhamos para nós e para o mundo em que vivemos, constatamos o quanto estamos distantes deste ideal de vida fraterna, sinal e expressão da vida de Deus. O autor do Génesis chegou à mesma conclusão: observou os conflitos, as guerras, a violência, o derramamento de sangue dentro das famílias, ódios e invejas. Concluiu que o projeto de Deus se transformou ao longo das gerações. O início não poderia ter sido assim, nem Deus projetaria a desgraça e as contendas entre pessoas e povos. O que terá então acontecido? O pecado. O egoísmo, a pressa em resolver tudo à sua maneira, a inveja pelos dons dos outros, a não-aceitação das diferenças. Por outras palavras: a disputa sobre quem é o maior e quem pode tornar-se protagonista além dos outros, por cima dos demais?!
       2 – A Palavra de Deus centra-nos, explicitamente nos domingos anteriores, no serviço ao outro como único caminho para seguir Jesus. Os primeiros, no reino de Deus, serão os que amam de todo o coração os irmãos e multiplicam em obras o que professam com os lábios.
       Os fariseus estão por perto e atentos. Formavam, na realidade, um grupo religioso muito zeloso pelo cumprimento da lei mosaica. O problema surge no radicalismo excludente, quando se coloca em causa a soberania de Deus e a universalidade da salvação, qual areia que se perde por entre os dedos da mão à medida que se aperta. Os fundamentalismos extremam os princípios e excluem cada vez mais pessoas, com a certeza que até os seus defensores acabarão por ficar de fora.
       Aproximam-se de Jesus e põem-n'O à prova: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Jesus fá-los procurar a resposta em Moisés: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio, para se repudiar a mulher». Logo Jesus completa, dizendo-lhes da provisoriedade da lei mosaica: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
       Com efeito, no início, Deus criou o Homem e a Mulher para viverem harmoniosamente e se auxiliarem mutuamente: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». É certo que a terra estava povoada pela multiplicidade de seres vivos, animais, aves, peixes, criados por Deus. Mas o homem sozinho não pode sobreviver, precisa de alguém que seja igual, auxiliar, da sua estirpe, do seu sangue. É preciso encontrar um olhar que possa ser devolvido na mesma proporção, um sorriso que possa ser acolhido, devolvido, partilhado. Por vezes valoriza-se em demasia um animal doméstico porque falta alguém a quem amar e que possa retribuir amando, alguém que nos compreenda e a quem queiramos falar.
       Da costela do homem, Deus criou a Mulher. Ao ver a mulher, o homem exclamou: «Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem». O compromisso é espiritual mas também carnal. Iguais, semelhantes, da mesma carne. Auxílio um para o outro.
       3 – O casal, homem e mulher, são um modelo para a vivência em sociedade. Diferença e alteridade. Física e espiritualmente diferentes, mas que se complementam. Na criação não há outro ser que se equivalha, que possa estar frente a frente, que possa responder-me. Aquele que me responde é responsável por mim e eu por ele.
       Tal como nos casais, como nas famílias, também em outros grupos sociais e eclesiais, sobrevém com mais facilidade o que separa do aquilo que aproxima, complementa, auxilia.
       Em casa os discípulos procuram compreender melhor as palavras de Jesus. E a resposta de Jesus é taxativa: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério».
       É uma resposta que nos custa ouvir, sabendo da nossa fragilidade e da nossa pequenez e da dificuldade enorme que muitas vezes se coloca em prosseguir um matrimónio sonhado e realizado. Aproximamo-nos do Sínodo Ordinário dos Bispos que debaterá a problemática da Família, tal como aconteceu há um ano no Sínodo Extraordinário. Têm vindo ao de cima diversas achegas, reflexões, contributos, que acentuam a mensagem de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimónio e, por outro, as situações reais e concretas em que não foi possível viver no compromisso assumido, estabelecendo compromissos posteriores. Terão que se encontrar formas ou instrumentos para não excluir ninguém com a escusa dos princípios, mas também sem mitigar a verdade do Evangelho, do matrimónio e da família. Há de prevalecer a misericórdia.
       4 – As crianças são um tesouro para a sociedade, de todos os tempos, também para os de hoje. Beneficiam de uma família que os acolha e os ame. Beneficiam a família e a sociedade que se enriquece com a sua vida, com a sua presença, e com o seu futuro. Uma sociedade que não trata bem nem os idosos nem as crianças, será uma sociedade a definhar, sem passado e sem futuro, como amiúde tem sublinhado o Papa Francisco.
       Enquanto Jesus responde aos discípulos, falando de família, do compromisso do casal, apresentam a Jesus umas crianças para que Ele lhes toque, abençoando-as. Os discípulos acham que a conversa é para adultos e que as crianças podem ser um estorvo. Jesus faz-lhes ver de novo que os pequeninos são os preferidos: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». E sublinha São Marcos que Jesus "abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas".
       As questões levantadas pelos fariseus e, depois, pelos discípulos são importantes, mas mais importante é acolher os outros e fazê-lo em atitude de bênção, de serviço, de amor. É válido para os casais, para as famílias, para a Igreja e para a sociedade. O reino de Deus implica que sejamos despretensiosos como as crianças, dóceis, vulneráveis, deixando-nos abençoar, e disponíveis para acolhermos com afabilidade e alegria os outros.
       Belíssima coincidência: celebra-se hoje a memória de São Francisco de Assis, expoente luminoso da Igreja como serviço, tendo-se tornado pobre para servir especialmente os mais pobres, para seguir Jesus, imitando-O na opção preferencial pelos mais frágeis.

       5 – A nossa origem é comum. O mesmo Deus que nos criou por amor, desafia-nos a amar-nos como irmãos, dando-nos o exemplo por Jesus Cristo, que, "por um pouco, foi inferior aos Anjos, vemo-l’O agora coroado de glória e de honra por causa da morte que sofreu, pois era necessário que, pela graça de Deus, experimentasse a morte em proveito de todos".
       Se a história nos traz o amor de Deus, também nos traz a história da queda e do pecado. A Encarnação de Deus, Jesus feito homem, Deus connosco, permite reensinar-nos a viver reconciliados com o Pai e uns com os outros. "Convinha, na verdade, que Deus, origem e fim de todas as coisas, querendo conduzir muitos filhos para a sua glória, levasse à glória perfeita, pelo sofrimento, o Autor da salvação. Pois Aquele que santifica e os que são santificados procedem todos de um só. Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos".
       Em Jesus Cristo, glorificado à direita do Pai, todos nós, estamos imbricados na salvação.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (B): Gen 2, 18-24; Sl 127 (128); Hebr 2, 9-11; Mc 10, 2-16.

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