sábado, 16 de agosto de 2014

XX Domingo do Tempo Comum - ano A - 17 de agosto

       1 – O amor de Deus não se circunscreve a um determinado círculo. É universal e concreto. Tem um Rosto. Uma Palavra. Um Corpo. Uma Vida. O amor de Deus visualiza-se em Jesus Cristo com palavras amáveis, comprovadas em gestos reabilitadores da dignidade humana. Em Jesus Cristo descobrimo-nos como irmãos, encontramo-nos como família, como filhos de Deus.
       A Encarnação de Deus realiza a redenção humana.
       Deus vem. Faz-Se um de nós. Dá-nos a Sua vida. Dá-nos o melhor de Si. O Seu maior e único amor: o Filho. Como facilmente verificamos, e como popularmente se diz, as moscas caçam-se com mel e nunca com o vinagre. O ser humano é salvo pelo amor, pela proximidade, pelo serviço. Nunca pela prepotência, pela escravização, pela instrumentalização.
       O percurso de Jesus leva-O ao encontro de povoações e de multidões. Porém, Ele não se perde em generalizações ou boas intenções. Está disponível. É todo ouvido, acolhimento. Acolhe o Amor do Pai. Acolhe-nos e envolve-nos nesse Amor maior. Sem fronteiras.
       Na região de Tiro e de Sidónia, uma mulher, estrangeira, cananeia, faz-se ouvir: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio».
       Aparentemente há um diálogo de surdos. Veja-se a guerra que se desenrola atualmente em Israel, com os israelitas de um lado e os palestinianos do outro (religiosa e maioritariamente: de um lado judeus e do outro muçulmanos). Breves tréguas, mas logo surge um disparo e a violência continua. Uma cananeia/palestiniana aproxima-se de um judeu para lhe pedir a cura da filha.
       Jesus não lhe responde e os discípulos intercedem: «Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós». A preocupação dos discípulos não é a mulher e as suas necessidades, mas o facto de ela estar a incomodar e a fazer cair atenções desnecessárias sobre Jesus. Então Jesus responde o que os discípulos e as pessoas que os acompanham estavam à espera: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel... Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos».
       Esta era a posição oficial e popular: o Messias de Deus viria para restaurar o povo de Israel, como nação escolhida e protegida por Deus.
       A mulher não se cala. Como nenhuma mãe se cala quando em causa está o bem dos filhos: «Socorre-me, Senhor... Também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».
       Jesus não Se faz rogado e responde-lhe: «Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas». Esta mulher e mãe consegue o que queria: a cura da filha. O amor salva-nos. Expande o nosso coração. Faz-nos pensar nos outros e agir em prol deles.
       2 – A esperança de Israel funda-se na Palavra de Deus, na promessa dos Profetas. Em momentos de perseguição, de violência e de êxodo forçado, os judeus esperam que Deus possa resgatá-los, para que voltem a ser um povo próspero, forte, no qual resplandeça a bênção de Deus. Os profetas acalentam a fé do povo, com nuances diferentes, mas sempre no sentido de libertação e de reunião do povo. O tempo presente, por mais amargo que seja, é de expiação e de provação para dias melhores.
       Quando Jesus aparece nas margens e entre o povo a pregar a proximidade do Reino de Deus, antecedido e sancionado por João Batista, os ouvidos estão atentos para as possibilidades: será Ele o Messias? Vamos ver mais de perto, não vamos perder esta oportunidade! Poderemos ser os primeiros a usufruir da força e da benevolência de Deus. Há sinais evidentes que a promessa de Deus vai cumprir-se. Falta um protagonista. Um Messias. Um novo Moisés. Um novo David. A fim de resgatar o povo. Ele porá fim ao domínio de povos estrangeiros, há de afastar os povos opressores, colocar-se-á firme contra o controlo romano, no caso presente.
       Os discípulos são filhos do seu tempo e da cultura judaica. Quando veem Jesus, incentivados pelos Batista, seguem-n'O. Não querem perder o barco. Muitas serão as ocasiões em que discutem entre eles quem poderá ter o melhor lugar, qual beneficiará mais dos favores de Jesus. Aproxima-se a Cruz e mesmo assim os discípulos continuam a disputar lugares, sem nada entenderem.
       Há grupos de judeus que se opõem claramente a Jesus. Porquê? Por razões parecidas com as dos discípulos. Vivem mais ou menos tranquilos. Sob domínio estrangeiro mas garantiram uma vida confortável, para si, suas famílias e círculos próximos. Jesus pode provocar uma rebelião que irrite as autoridades estrangeiras, podendo ficar arredados dos privilégios que mantêm. Os discípulos permanecem perto para terem mais. Alguns grupos querem silenciar Jesus para não perderem nada do que têm.
       Por outro lado, também esperam um Messias que os promova, cujo poderio afaste os romanos, dando-lhes ainda mais regalias. A primeira resposta de Jesus à cananeia outra coisa não faz do que dar largas ao pensamento da maioria dos judeus, incluindo os seus discípulos.
       3 – O clamor da cananeia, é também o clamor dos salmistas, é o nosso clamor: "Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção, resplandeça sobre nós a luz do seu rosto. Na terra se conhecerão os vossos caminhos e entre os povos a vossa salvação". Se Deus é Pai e nos ama com amor de Mãe não deixará de nos escutar e vir em auxílio das nossas preces.
       Na verdade, Jesus sublinha esta dinâmica de bênção e de eleição. O povo de Israel fora escolhido para ser um instrumento de salvação. Como promessa a Abraão, n'Ele serão abençoados todos os povos da terra. Não se estranham as palavras do profeta: «Respeitai o direito, praticai a justiça, porque a minha salvação está perto e a minha justiça não tardará a manifestar-se. Quanto aos estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, para amarem o seu nome e serem seus servos, se guardarem o sábado, sem o profanarem, se forem fiéis à minha aliança, hei de conduzi-los ao meu santo monte, hei-de enchê-los de alegria na minha casa de oração. Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceites no meu altar, porque a minha casa será chamada 'casa de oração para todos os povos'».
       Por aqui se vê a lucidez de Isaías que alarga a Aliança a todos os povos da terra.
       São Paulo depara-se, num tempo posterior, mas próximo do contexto dos evangelhos, com a discussão que ainda se faz sentir e que leva alguns judeus a dar pouco crédito a Jesus e pouco crédito aos seus discípulos. Seria mais uma farsa, um logro com promessas vãs e que terá reflexo nas primeiras comunidades cristãs, inclusivas de judeus nativos ou da diáspora e de pagãos: aguardavam que a morte e ressurreição de Jesus desse lugar à restauração de Israel, em definitivo. Como aparentemente nada acontece, vem o desencanto. Os apóstolos, à luz da Páscoa, terão uma missão exigente de apontarem para o Reino de Deus que já opera e não para um reino de poder e de violência que substitua o existente, trocando apenas os protagonistas.

       4 – Escutemos as palavras de São Paulo:
«É a vós, os gentios, que eu falo: Enquanto eu for Apóstolo dos gentios, procurarei prestigiar o meu ministério a ver se provoco o ciúme dos homens da minha raça e salvo alguns deles. Porque, se da sua rejeição resultou a reconciliação do mundo, o que será a sua reintegração senão uma ressurreição de entre os mortos? Porque os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis. Vós fostes outrora desobedientes a Deus e agora alcançastes misericórdia, devido à desobediência dos judeus. Assim também eles desobedecem agora, de modo que, devido à misericórdia obtida por vós, também eles agora alcancem misericórdia. Efetivamente, Deus encerrou a todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos».
       A dialética do apóstolo encerra-nos a todos na misericórdia de Deus, judeus e gregos, homens e mulheres, pela obediência, pela escuta da Palavra que nos transforma, alcançaremos de Deus a misericórdia. Aquela mulher olhou para Jesus e percebeu que Ele era um homem de Deus e, por conseguinte, não deixaria de olhar para a humildade da sua serva, para o seu amor, para a sua fé.
       Quando sentirmos que a vida nos escapa, tenhamos a ousadia da fé para nos colocarmos nas mãos de Deus.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 56, 1.6-7;Sl 66 (67) Rom 11, 13-15.29-32; Mt 15, 21-28.

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